terça-feira, 29 de abril de 2014

Miséria e excesso de poder


Os modelos econômicos que não se identificam com o respeito à dignidade humana (esse é o caso do comunismo assim como do capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual) nem tampouco com as garantias constitucionais dos direitos humanos ou mesmo com as suas liberdades essenciais (liberdade política e igualdades de oportunidades para todos, que poderão crescer depois disso conforme o seu mérito) não passam de um sofisma, uma forma de alienação do humano pela política, porém, pior que pela religião, já que um ditador de carne e osso ou um privilegiado capitalista selvagem é mais onipotente e tirânico que o pior de todos os deuses (veja Guillén: 1990, p. 11).
Nos países vergonhosamente desiguais (assim são o comunismo e o capitalismo selvagem e/ou extremamente injusto), onde a maior parte das leis “não são mais que privilégios, isto é, um tributo que pagam todos para a comodidade de alguns” (Beccaria), comumente se somam as duas grandes heranças históricas da humanidade: a miséria (o sofrimento, a fome, a angústia da vida diária) e o excesso de poder (do estado autoritário, do estado policialesco, das classes dominantes etc.). Nisso reside boa parte do conteúdo do (ainda vago) conceito de brasilianização, que transmite a ideia não só de um processo feroz de acumulação de capital e de violência massiva, como também de uma massa imensa de miseráveis, entendendo-se por miseráveis não apenas os que não ganham rendimentos (porque não estão trabalhando) senão também os que estão no mercado de trabalho de forma precária (ou seja: trabalham, mas não são reconhecidos em sua dignidade).
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), “em 2011 mais de 40 milhões de trabalhadores – entre assalariados sem carteira, empregados domésticos e aqueles que trabalham por conta própria – estavam no mercado de trabalho em postos com baixa remuneração e sem cobertura da Previdência Social, isso sem contar os ocupados na produção/construção para o próprio consumo/uso e os não remunerados” (veja Ganz Lúcio, Jager e Melo, Le Monde Diplomatic Brasil, abril 2014, p. 15). No Brasil também é muito alta a taxa de rotatividade: “De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), havia no país 47,5 milhões de empregos formais em 2012, a maior parte deles sem exigência de qualificação mais elevada; além disso, 72,9% dos empregados formais recebiam até três salários mínimos (mais da metade, até dois) (…) A Rais revela ainda que, em 2012, foram admitidos 27 milhões de trabalhadores e desligados 25,9 milhões. O saldo positivo de 1,1 milhão significa que, para cada emprego novo criado e remanescente ao final do ano, foram realizadas pouco mais de 23 admissões. Os números de 2012 não são exceção e mostram a enorme flexibilidade para contratar e desligar um funcionário” (veja Ganz Lúcio, Jager e Melo, Le Monde Diplomatic Brasil, abril 2014, p. 15). A maioria ou, pelo menos, grande parte dos trabalhadores brasileiros (1) ganha baixa remuneração, (2) não conta com a Previdência Social, (3) se sujeita a uma alta rotatividade no emprego e (4) não conta com qualificação mais elevada. Isso corresponde ao que chamam de precarização.
Nos países comunistas e de capitalismo selvagem e/ou extremamente desiguais, os dois males da humanidade (miséria e excesso de poder) estão involucrados (envolvidos) nas relações de poder de classe. Foucault (2012, p. 69), exemplificando os dois males, recorda que “as duas heranças negras [do século XX] foram o fascismo e o stalinismo. O século XIX se deparou, como problema fundamental, com a miséria, a exploração econômica, a formação de uma riqueza, a do capital baseado na miséria daqueles que produziam a riqueza; já no século XX eclodiram regimes ora capitalistas, como sucedia com o fascismo, ora socialistas, como se dava com o stalinismo [ora racista, como seu com o nazismo de Hitler], nos quais o excesso de poder do aparato do Estado, da burocracia, dos indivíduos uns sobre os outros, constituía algo absolutamente repelente, tão repelente como a miséria no século XIX. Os campos de concentração foram para o século XX o que as famosas cidades obreiras, a mortalidade obreira, foram para Marx e seus contemporâneos”.
Costuma-se afirmar que os excessos de poder, que culminam quase que invariavelmente numa violência, somente acontecem por falta de racionalidade. Foucault (2012, p. 19-20) discorda dessa tese e, ao contestá-la, assevera precisamente o contrário, ou seja, “Existe uma lógica nas instituições, na conduta dos indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas formas mais violentas. Na violência, o mais perigoso é sua racionalidade. Certo, a violência em si mesma já é muito terrível. Porém a violência encontra sua ancoragem mais profunda e sua forma permanente na racionalidade que nós utilizamos. Afirma-se que se vivêssemos em um mundo racional, poderíamos nos livrar da violência. Isso é completamente falso. Entre a violência e a racionalidade não existe incompatibilidade”.

Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes

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